[ALERTA: Este texto contém spoiler]
Não fale o mal é um ótimo filme para retratar o patriarcado em sua melhor forma.
Recentemente assisti ao remake do longa dinamarquês Speak no Evil (2022), versão angloamericana. Dizem que o original é impecável, extremamente angustiante e um terror psicológico absurdo. Não é o caso do remake que, sim, cumpre o seu papel de deixar o espectador agoniado, mas não a nível de se tornar um filme inesquecível porque muita coisa é mastigada ao longo do filme. No entanto, é bem atuado e entrega aflição.
Na direção temos James Watkins, mais conhecido por Abismo do medo 2 (2009) e no elenco temos James McAvoy como Paddy, Mackenzie Davis como Louise Dalton, Aisling Franciosi como Chiara, Scoot McNairy como Ben Dalton, Dan Hough como Ant e Alix West Lefler como Agnes Dalton.
O filme gira em torno da relação de duas famílias (americana e londrina) que decidem tirar férias no mesmo local, na Itália, e a partir de então, formam um tipo de amizade de férias.
Ben e Louise Dalton são um casal americano calmo, moderado para não dizer reprimido e com alguns problemas de interação. Pais de Agnes, uma menina por volta dos 10-11 anos que sofre de fortes crises de ansiedade, buscam encontrar um pouco de paz e descanso nas pequenas férias antes de voltarem para a vida em Londres, onde moram há pouco tempo.
Já Paddy e Chiara são o oposto: Espontâneos e cheios de vida, liderados por Paddy, tomam os espaços e atraem olhares para si. São pais do Ant, um menino que tem problemas de interação social devido a uma deficiência na língua e que vive pelos cantos um pouco.
Logo no primeiro contato, Ben se encanta pelo jeito de Paddy, que parece ser mais vívido e másculo que ele. Paddy toma a frente das situações em nome da família, parece buscar o conforto de todos, é carinhoso com a esposa e o filho, fala alto o suficiente para ser visto, mas sem ser desconfortável e é forte. Enquanto Ben é franzino, inseguro, mal encosta na esposa e tem dificuldades de entender a ansiedade da filha. Enquanto Paddy é o retrato do homem seguro e conectado, Ben é inseguro e totalmente desconectado com os seus.
Nas cenas seguintes, é Paddy que os livra de situações embaraçosas, propõe experiências bacanas para a filha do casal, beija a esposa apaixonadamente (e são ‘espiados’ por Ben que fica atônito ao ver um casal casado se amando) e, mesmo estando deslocado devido a rigidez, Ben não para de segui-lo.
Em pouco tempo de filme sabemos que a situação de Ben e Louise não está muito boa. Ele foi transferido dos EUA para abrir uma nova sede do escritório na Europa, mas não rolou, enquanto ela abandonou toda a vida e profissão nos EUA para segui-lo. A adaptação em Londres não estava sendo tão fácil, a menina desenvolveu ansiedade, o casamento deles estava por um triz e Ben esperava ser alocado em outra vaga, o que também não aconteceu.
Eles são convidados para irem à casa de campo do novo casal de amigos de viagem, mas logo que recebem o convite físico, Louise deseja desistir pelo desconforto de ir à casa de quem nem conhecia bem. Porém, com a notícia de que Ben não conseguiu a vaga de trabalho, vendo sua decepção e culpada pela crise do casamento gerada por uma traição digital de sua parte com o pai de uma colega de turma da filha, ela cede e a família vai rumo à casa de campo.
Ponto central: Ben é inseguro, emotivo e tem seu dispositivo da eficácia (cunhado por Valeska Zanello) abalado tanto na parte laboral, quanto sexual.
Zanello descreve que o processo de socialização masculina se dá pela via de provar a sua eficácia para si mesmo e aos outros, dividindo-se na sua produtividade (ou reconhecimento) no aspecto laboral (inclui o financeiro, destaques e aperfeiçoamento no trabalho) e sexual (o sexo torna um sujeito homem. Ele faz O homem).
Neste caso, Ben não tinha nada. Nem o reconhecimento do seu esforço pela firma (já que não conseguiu o escritório), nem o amor incondicional de sua esposa, além de não conseguir lidar com a filha.
Já Paddy, não mostra esses conflitos iniciais. Sua esposa é devotada, faz tudo por ele e é a única que o acalma. Seu filho, o qual demonstra carinho, tem problemas de socialização devido a má formação da língua. Ao contrário de muitos homens que se ressentiriam, Paddy não age como se tivesse alguma vergonha disso, pelo contrário, pede para que Agnes o ajude a brincar e verbaliza as dificuldades do filho.
Durante o filme, Paddy ultrapassa limites mostrando a sua territorialidade. Como um cão que marca os lugares por onde passa, ele sente prazer em deixar suas visitas desconfortáveis. Seja preparando uma de suas caças para o jantar mesmo sabendo que Louise era vegetariana (na cena, ele a coage a comer um pedaço do porco de estimação morto e ela aceita para não fazer desfeita), deixando a cama das visitas com lençol velho e sujo, sua esposa simulando s3xo oral na frente do casal de visitas, até convidar o casal para jantar e deixar as crianças aos cuidados de um completo estranho.
Ben é deslocado, inquieto, inseguro, mas mesmo desconfortável não consegue e não quer se posicionar contra Paddy, algo que Louise faz várias vezes. Ele insiste para que a esposa seja mais flexível, para que releve as faltas de limites de Paddy já que não suporta voltar a vida de invisibilidade em casa. Por mais estranho que seja, com Paddy ele é visto, é reconhecido e se sente fortalecido. Ao mesmo tempo é afetado. Ele precisa de Paddy para se sentir mais homem. Precisa da masculinidade que ele exala mesmo que ela o constranja e o faça se sentir inadequado e menor. Aquilo que ele deseja também é o que o fere. A masculinidade que ele quer e nunca alcança é o símbolo do seu fracasso. Mas, incapaz de trilhar essa linha de raciocínio, Ben joga toda sua frustração na família com toda ausência. Ele sabe que é insuficiente, mas não elabora e nem quer saber como melhorar. O que ele quer e acha que será capaz de resolver tudo é se tornar o homem dos sonhos masculinos que, ele julga, também ser o sonho de sua esposa e filha.
Se mudar para outro país em busca de realizar o sonho do parceiro é algo que faz sentido dentro da socialização feminina. Como as carreiras (sonhos, famílias e vidas) femininas são vistas enquanto secundárias -como hobbies que nos entretêm até aceitarmos nossa “verdadeira” vocação (maternidade, cuidado da casa e do marido – como se ele fosse incapaz de cuidar de si mesmo)-, as mulheres aprendem a não desejar por si, mas pela sombra do marido. Aquela que não atrapalha, dá base e sustenta o sucesso dele (apoiando, nutrindo, vestindo a caminha) pois este seria o sucesso de toda “família”. Um homem não precisa convencer uma mulher de que o seu emprego é importante para o sustento da casa, talvez ele nunca se mencione como O provedor, mas com a mentalidade certa ela mesma pode interpretar que depende dele como líder financeiro mesmo que, na realidade, ele gaste tudo fora do lar, não pague as contas e dependa da renda dela. Um pensamento que não é partilhado pela classe masculina, claro, que na primeira crise joga na cara que ela “nunca fez nada e quer metade de tudo”, que tudo que ele construiu é dele... Enfim.
Nenhum adulto é santo. Todos foram e são afetados ao longo do filme por suas histórias, por suas relações, pela forma que interpretam a vida...
Louise não é tão comedida quanto Ben. Apesar de ser travada e claramente reprimida, em vários momentos do filme se posiciona contra Paddy, Ben e Chiara e mostra sua opinião. É ela quem tem o tino de verificar se a filha está bem, que ajeita tudo para sair do local quando entende que tem algo errado, que se posiciona diante dos abusos de Paddy contra Ant. Porém, assim como Ben que é pego em sua socialização, ela também é. Por se sentir culpada pelos problemas conjugais, ela aceita passar por cima de sua intuição e vai para uma casa que não queria, fica esperançosa em ver o marido se posicionando firmemente diante de Paddy para que ela e a filha fiquem a salvo (o que não aconteceu) ou seja, diante um homem claramente agressivo, ela - assim como a maior parte das mulheres- espera que ele interfira na situação e dê voz a tão falada proteção masculina a qual somos criadas para esperar (homem de verdade protege a sua família), apenas para cair em frustração vendo quão leais (ou medrosos) eles são uns aos outros. Louise nega novamente suas impressões quando é pega no dispositivo materno ao ver Chiara triste pela filha perdida e baixa a guarda. Mesmo assim, é ela – dentre o casal- quem se posicionará para enfrentar o mal. Em várias cenas, ela aparece na frente do marido e da filha representando proteção.
Chiara é, ao mesmo tempo, vítima e algoz. Fica subentendido que ela foi uma das vítimas de Paddy quando ainda era adolescente e que, desde então, ela foi tornada “esposa” dele após vê-lo matar seus pais. Participante ativa no recrutamento das vítimas em viagens, posando de casal feliz na intenção de encontrar filhos adotivos e roubar o dinheiro da família, é ela quem convence as mulheres a relevarem o “jeitão” de Paddy. Entre o aparente medo que ela passa a sentir quando ele vai se descontrolando e a devoção que expressa, vemos a representação do livro Amar para Sobreviver: Mulheres e a síndrome de Estocolmo Social.
Paddy faz questão de culpa-la por todos os infortúnios que acontecem, mesmo aqueles que ele causou e os quais ela não teve a menor responsabilidade. Responsabilizando-a e ameaçando-a caso ele não consiga manter o estilo de vida “tranquilo” deles, ou seja, sem trabalhar, ela coopera na tentativa de ficar viva e, claro, desenvolve um tipo de amor doentio por ele. Em alguns momentos, fica claro o seu medo e sua sinceridade sobre sofrer as consequências nas mãos de Paddy caso eles fujam. Ao mesmo tempo, ela colabora mantendo as vítimas cada vez mais tempo na casa para que ele as abata.
Ant, o suposto filho, se articula durante todo filme para mostrar que não é filho deles, que foi uma vítima e que a família está em perigo. Ele tenta se comunicar com Ben (que o ignora), com Louise (que não o entende) e com Agnes que, ao longo do tempo, dá credibilidade para o amigo e entende que eles são as vítimas da vez. Sua língua não nascera defeituosa, mas foi cortada para impedir a comunicação. Ant é marcado física e emocionalmente, tendo que aceitar os carinhos forçados de seus algozes e os maus tratos deles sem deixar aparente para as visitas.
Ele é a representação de toda criança que é fisicamente violentada: Ela não fala, mas pior do que isso, ela NÃO PODE falar (neste caso, literalmente), senão pagará caro quando ninguém o vier ajudar. Ele precisa sofrer calado, guardar toda mágoa dentro de si, não pode demonstrar raiva ou ressentimento pelo risco de morrer. Ele não pode acabar com a família, precisa aparentar apatia e gratidão. Mais do que isso, precisa deixa de ser ele mesmo para viver uma encenação onde faz parte de uma família harmônica e perfeita enquanto é ameaçado diariamente e punido fisicamente. Ant não têm seus pais, pois eles foram mortos por seus algozes, tal qual toda criança física e sexualmente abusada entende: na sua cabeça, seus pais (amados e respeitados, mesmo que apenas como uma ideia) foram m0rtos por essas novas pessoas que a maltratam. Através da clivagem, conseguem amar uma lembrança ou idealização de seus pais perfeitos e odiar as “novas” pessoas que os ferem, mas sem poder colocar para fora.
Ant é a peça-chave de tudo, pois sem suas articulações para mostrar incansavelmente o buraco em que a família estava enfiada, eles não teriam a menor chance de lutar por sua sobrevivência. Simbolizando o seu nome Ant (a formiga), faz um trabalho paulatino com os outros para destruir seus abusadores. Por fim, ele é a pessoa que dá fim em Paddy, colocando para fora pela primeira vez toda a sua raiva e não medo. Após essa cena, ele finalmente consegue chorar, mas fica claro que não é possível sair ileso de algo profundo.
Agnes, muito mais sensível que qualquer adulto, percebe o pedido de ajuda de Ant. Como eles ficam muito tempo juntos são nesses momentos em que ele busca de várias formas comunicar que algo ruim está acontecendo. Ela tenta falar com os pais e eles não a ouvem. Muito ansiosa, não vê no pai o apoio que precisa para as crises, só na mãe porque ele está muito distante emocionalmente para saber lidar. Em alguns momentos, sofre duras intervenções de Chiara que, projetando nela a figura da filha que queria ter, busca moldá-la dentro dos ideais esperados para uma menina no patriarcado. Este ponto é interessante porque são as mulheres que se comunicam com Agnes e os homens que se comunicam com Ant, exemplificando que a socialização é passada principalmente por nossos iguais e é a palavra da mulher (que ocupa o lugar materno) que nos introduzirá na feminilidade. Após saber o que estava, de fato, acontecendo na casa, Agnes finge que teve sua menarca para pedir ajuda da mãe no banheiro. E Paddy, estranhamente, diz a todos que agora ela não é mais uma menina, mas uma mulher. Dando a entender que ele a via de forma diferente. Apesar da insegurança e das crises de ansiedade, Agnes é empática com Ant, busca ajudá-lo e por sua sensibilidade e capacidade de raciocínio, consegue se salvar. Apesar de ser a sua crise de ansiedade que leva os pais de volta para os algozes, se eles a tivessem escutado logo, muita coisa seria evitada.
Aqui, é importante destacar como as crianças são impotentes diante da violência dos adultos e necessitam de outros adultos para ajudá-las, pois mesmo em sua melhor articulação, ainda têm dificuldades de crianças.
Por fim, Paddy é a representação da masculinidade em sua face mais crua. Ele é manipulador, cativante e impulsivo. Finge ser protetor da família, mas é apenas um maníaco autoritário que sente menos prazer em abater a vítima e mais por vê-la caindo em sua rede. Ele busca constantemente o poder nas coisas mais simples às maiores. Desde o início da estadia em sua casa, ficou claro que ele ditava o tom de como as visitas deviam se comportar. Ele ultrapassava limites, os constrangia, os deixava absolutamente desconfortáveis e ainda os fazia sentir culpados por isso. Seu jogo de poder era tão absoluto que mesmo incomodados desde o início, os Dalton (sobretudo Bem) sentem dificuldade em dizer não. Conforme seus conflitos com Louise ficam mais evidentes, ou seja, ele é contrariado, mais instável fica o seu comportamento. Ao contrário de Chiara que não estudou, vive para ele e para o suposto filho, Louise tinha suas convicções, sua forma de criar Agnes, traiu o Ben virtualmente e se impunha -com todas as limitações- diante dos dois. Ela o desestabiliza porque não permite que o personagem do bom anfitrião se mantenha por muito tempo, mas sua força está em Ben e na sua necessidade de aprovação.
Ben precisa de Paddy para entrar na casa dos homens. Ele precisa recuperar a masculinidade que lhe foi “roubada” quando perdeu a promoção do trabalho e descobriu o envolvimento de Louise com o terceiro. Ele precisa voltar a ser Homem e o líder da casa, assim como o novo amigo. E Paddy está disposto a dar a sensação de ter isso a ele, mas com doses cavalares de subjugação e humilhação. Estar com Paddy não deixa Ben mais poderoso, pelo contrário, o torna mais dependente. Se antes ele lutava contra um Homem (com H maiúsculo) hipotético que julga todas as suas ações em sua mente, agora ele o vê fisicamente, o que o encolhe ainda mais. Viciado em ser aprovado, Ben está disposto a se cegar em busca do selo de Paddy, mesmo que isso signifique colocar toda a sua família em perigo. Ele não conduz as situações, ele não consegue acalmar a filha, não consegue analisar as situações e ler o ambiente. Ele é um eterno dependente de Louise e de Paddy.
O filme pincela rapidamente que Paddy teve uma infância difícil com um pai muito autoritário e que, possivelmente, ele é assim pelo duro tratamento que recebeu durante a vida, mas isso não é aprofundado. Mais do que tentar criar empatia com o vilão justificando sua crueldade, o filme o encerra em sua agressividade. Seu objetivo é financeiro: Ele quer o dinheiro das vítimas para não ter que trabalhar, quer formar uma família e ter filhos para fazer mais vítimas. Paddy sabe que sua passibilidade como homem respeitável aumenta quando ele aparece alegremente com sua esposa e filho deficiente. Ele preda casais com claros problemas relacionais porque sabe que a sua postura pega exatamente no ponto do homem e que uma criança com deficiência pega exatamente no ponto da mulher, além de ter sua esposa como uma mulher cheia de vida, libido e feliz o que é- claramente- um ponto de inveja para qualquer outra esposa. Mas além disso, ele realmente quer um modelo tradicional de família. Ele busca nela o ponto de paz e equilíbrio, ao mesmo tempo que agride. Não importa se para ter uma família ele precise m@tar, t0rturar ou 3stupr@r pessoas. Ele quer e por isso, vai conseguir. Em sua cabeça, nada disso diminui o amor que sente por Chiara, pois como um bom objeto, seu valor é dado por ele, então se ele diz que é amor, é.
Paddy é obcecado, instável e territorialista. Não há momentos de relaxamento perto dele pois até brincando ele toma o espaço todo para si. Sua agressividade é assustadora para uma mulher, mas ele não se comunica com Louise a não ser para colocá-la em seu “lugar”, ele se comunica com o Ben. Enquanto Louise se assusta, Ben se identifica e apaixona pelo ideal que ele representa. Seus motivos não são bem desenvolvidos na narrativa, mas o que fica é que ele passa por cima de tudo para ter o que quer. Além disso, Paddy não permite que os outros falem sobre nada de errado. Usando chantagem emocional ou violência, ele coage seus familiares e visitantes em um eterno gaslighting a não falarem sobre o mal presente.
Teria muito mais a dizer, mas o filme – muito bem atuado por sinal- é um retrato do patriarcado onde os acordos feitos entre os homens para o suprimento da masculinidade colocam todas as outras pessoas em risco em muitos níveis, passam por cima da família, da segurança e do bem estar coletivo. Porém, não sem a colaboração das mulheres que por passividade, omissão ou ação, ajudam a perpetuar tal comportamento. No entanto, são elas que no fim das contas, junto com as crianças, expõe toda a sua vulnerabilidade e salvam a todos.
Indico demais.